
Vivia em uma região de um certo reino uma moça bonita, inteligente e bem afeiçoada, por isso cobiçada pelos homens das vilas vizinhas. Os conterrâneos da moça pouca atenção davam-lhe, talvez devido à convivência, à proximidade. Não se sabe bem.
O certo é que, fugindo do desprezo da parte dos seus, a moça entregou-se à solidão, passando então a viver uma vida simples, ao lado de um valente cão, que a protegia de malfeitores.
Polis era o nome da moça. Um dia apareceu-lhe um rapaz bem falante e de uma resplandecente beleza. A moça então se enamorou desse rapaz, que lhe disse chamar-se Tyrannus.
Quando da primeira visita do rapaz à moça, o cão impediu-lhe que transpusesse a soleira, mordendo-lhe os calcanhares. “Para que possamos nos ver – disse Tyrannus a Polis – é preciso sacrificar o cão.”
Na manhã seguinte a moça matou, ela mesma, o seu cão, que atendia pelo nome de Liberum. À noite, o rapaz voltou. Porém o corpo do cão, deixado ali por perto, estremeceu-se, assustando-o.
“É necessário que se extinga por completo o cão” – voltou a pedir o rapaz. E, no dia seguinte, a moça, ela mesma, incinerou o corpo do cão. Mas ainda o rapaz não pode se aproximar; as cinzas de Liberum espargiram-se sobre sua capa escura e ele foi embora.
“Somente voltarei – disse o rapaz, com voz macia – se nada restar do cão.” Mal amanheceu, a moça vasculhou o terreiro, a soleira, toda a casa, nada deixando de Liberum. Sentou-se à porta e ficou à espera do rapaz.
Quando o sol se foi a noite caiu e, com ela, a escuridão, que envolveu toda casa e seu terreiro. Então Tyrannus chegou.
(…)
Distante dali, em um outro reino, um casal de jovens, de nomes Demos e Kratia, conversam, ao som de um alaúde:
– A verdade é uma arma forte.
– A outra, a justiça, dela depende. Pela justiça, escondem-se verdades!
– Mas não se iludam os experientes e os imberbes! O tempo passa, mas o tempo é aliado da verdade.
– Se obrigam-no a contê-la, alimenta ele, dia a dia, a ela.
– Até que a verdade se rompe e, então, se faz a justiça.
A ilustração trata-se da tela A Woman Playing the Theorbo-Lute and a Cavalier, 1658, do pintor holandês Gerard ter Borch (1617-1681)